INTRODUÇÃO
A afirmação de que um
cristão regenerado poderia “dar legalidade ao diabo” tornou-se recorrente em
determinados ambientes carismáticos e neopentecostais, principalmente a partir
dos anos 1980 e 1990, com a difusão de um modelo de batalha espiritual que sugere
que palavras, pecados específicos, vínculos anteriores ou comportamentos
cotidianos poderiam abrir uma espécie de “base legal” que autorizaria Satanás a
interferir na vida do crente de modo mais profundo. Todavia, tal expressão não
aparece nas Escrituras e, mais do que isso, apresenta dificuldades teológicas
sérias no que diz respeito ao senhorio de Cristo, à doutrina do selo do
Espírito e à própria compreensão soteriológica reformada.
É necessário afirmar, desde
o início, que todo cristão verdadeiro foi trasladado do reino das trevas para o
reino de Cristo, como ensina o apóstolo Paulo: “O qual nos tirou da potestade
das trevas, e nos transportou para o Reino do Filho do seu amor” (Cl 1.13,
ARC). Este versículo demonstra que houve uma mudança de domínio, de autoridade
e de esfera espiritual. O verbo “tirar” e o verbo “transportar” carregam um
sentido de transferência real e definitiva. Nada no texto sugere uma
possibilidade de regressão legal à autoridade das trevas.
A Escritura apresenta o
cristão como propriedade exclusiva de Deus, conforme afirma o apóstolo Pedro:
“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo
adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para
a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9, ARC). É notável que Pedro utiliza a expressão
“povo adquirido”. O termo adquirido indica posse, compra e pertencimento. Ou
seja, há uma declaração ontológica e espiritual: somos povo possuído por Deus
em Cristo, e essa realidade não depende de méritos humanos, mas da obra
soberana de Deus.
Da mesma forma, o selo do
Espírito Santo é apresentado como marca definitiva de pertença: “E não
entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da
redenção” (Ef 4.30, ARC). O selo é garantia de posse. Uma vez que o Espírito
Santo sela o crente para o “dia da redenção”, não encontramos em nenhum texto
bíblico a possibilidade de um contra-selo demoníaco. A expressão “selados para
o dia da redenção” implica continuidade até a consumação escatológica,
apontando para a preservação final dos santos (perseverança dos santos),
doutrina basilar da soteriologia reformada.
O apóstolo João assegura
também que o maligno não pode dominar o crente: “Sabemos que todo aquele que é
nascido de Deus não peca; mas o que de Deus é gerado conserva-se a si mesmo, e
o maligno não lhe toca” (1Jo 5.18, ARC). Esta afirmação exclui a possibilidade
de domínio espiritual por parte do inimigo. “Não toca” aqui não significa
ausência de tentação, mas ausência de domínio ou posse. Não se trata de negar
ataques externos, mas de negar autoridade demoníaca sobre o regenerado.
O problema teológico da
ideia de “legalidade” consiste em supor que o diabo teria um direito jurídico
paralelo, capaz de reivindicar aquilo que Cristo adquiriu por seu sangue. Essa
visão, embora popular, enfraquece a doutrina da redenção, reduz o poder do selo
do Espírito e introduz uma lógica quase contratual entre crente e demônios,
como se atos humanos fossem capazes de revogar a obra de Cristo ou de anular o
senhorio divino sobre o eleito. Nada disso encontra apoio na doutrina
reformada, nem na Escritura, nem na história da Igreja antiga, nem nas
confissões clássicas.
Diante disso, o objetivo
deste artigo será demonstrar, biblicamente e teologicamente, que a expressão
“dar legalidade ao diabo” é estranha às Escrituras e à teologia reformada, e
que o cristão regenerado é, em Cristo, propriedade definitiva do Senhor, incapaz
de transferir novamente domínio espiritual à potestade das trevas.
CAPÍTULO 1 — A FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA DA
PROPRIEDADE ESPIRITUAL DO CRENTE
Um dos temas centrais na
Escritura e decisivos para esta pesquisa é a afirmação de que o crente não é
espiritualmente neutro, nem espiritualmente autônomo. A Bíblia afirma que todo
ser humano pertence espiritualmente a um senhor: antes de Cristo, pertence às
trevas; após conversão, pertence a Deus. Portanto, toda discussão sobre
“legalidade do diabo” deve começar pela afirmação bíblica do pertencimento do
cristão ao Senhor.
A linguagem bíblica é
enfática: o cristão foi adquirido por Cristo mediante o seu próprio sangue, de
modo que sua vida espiritual é governada, selada e preservada por Deus. A
Escritura não apenas declara que Deus toma posse do crente, mas que a posse é definitiva,
em vista do decreto eterno, da eleição e da obra consumada de Cristo na cruz.
A Bíblia é clara ao
descrever o estado espiritual do homem antes da regeneração. Paulo ensina que
estávamos mortos, escravos do pecado e sujeitos ao domínio espiritual do
maligno. Em Efésios 2.1-2, lemos: “E vos vivificou, estando vós mortos em
ofensas e pecados, em que noutro tempo andastes, segundo o curso deste mundo,
segundo o príncipe das potestades do ar; do espírito que agora opera nos filhos
da desobediência” (Ef 2.1-2, ARC). Este texto afirma que o mundo espiritual
está dividido entre os filhos da desobediência e os filhos de Deus; entre
aqueles que pertencem ao príncipe das potestades do ar e aqueles que pertencem
a Cristo. Não existe estado intermediário. O homem natural está sob o domínio
do maligno, porém o texto ensina explicitamente que tal domínio é passado:
“noutro tempo andastes”. A conversão rompe, portanto, a autoridade das trevas.
O apóstolo Paulo afirma
claramente que essa transferência de domínio ocorre pela obra de Cristo. O
texto fundamental é Colossenses 1.13: “O qual nos tirou da potestade das
trevas, e nos transportou para o Reino do Filho do seu amor” (Cl 1.13, ARC).
Aqui há duas verbos fundamentais: “tirou” e “transportou”. Ambos são ações
divinas. O homem não tira a si mesmo das trevas; Deus o faz. Deus o remove.
Deus o transporta. Logo, a transferência não depende do homem. O versículo
também estabelece que o novo domínio é o “Reino do Filho do seu amor”. Não se
trata meramente de autoridade moral, mas de jurisdição espiritual. É domínio do
Filho, não mais do príncipe das trevas. Trata-se de uma mudança de senhorio. A
partir do momento em que se pertence ao Filho, não se pertence mais ao maligno.
Outro elemento bíblico
decisivo é a linguagem da compra. Paulo declara: “Pois fostes comprados por bom
preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais
pertencem a Deus” (1Co 6.20, ARC). Aqui se nota a ideia clara de transação
espiritual: fomos comprados. E, comprados, pertencemos ao comprador. Não somos
livres espiritualmente, somos propriedade. Isto significa que qualquer ideia de
“dar legalidade ao diabo” parte de uma suposição errada: a de que ainda temos
propriedade sobre nós mesmos, ou que Satanás pode reivindicar aquilo que Deus
comprou. Biblicamente, isso não faz sentido. O texto é direto: o corpo e o
espírito pertencem a Deus.
A Escritura ensina também
que a posse divina implica preservação. Jesus declara: “E dou-lhes a vida
eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo
10.28, ARC). Observe-se que não se trata de promessa condicional, mas absoluta.
Cristo garante que ninguém arrebatará das suas mãos as suas ovelhas. Ora, se
ninguém pode arrebatar, muito menos o diabo poderia reassumir domínio, porque
isso implicaria que Cristo não tem autoridade suprema. Paulo, por sua vez, usa
a linguagem do selo – linguagem jurídica e espiritual. Efésios 4.30 afirma: “E
não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da
redenção” (Ef 4.30, ARC). Note-se que o selo permanece “para o dia da
redenção”, isto é, até a consumação escatológica. Logo, não existe previsão
bíblica de selamento alternativo por parte do diabo.
Pedro ensina: “Mas vós sois
a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido” (1Pe
2.9a, ARC). A expressão “povo adquirido” não é apenas descritiva; é teológica.
Significa povo comprado por Deus e possuído por Ele. Portanto, o cristão não
pode ser, ao mesmo tempo, povo adquirido por Deus e povo sob legalidade do
diabo. Isso violaria a base bíblica da redenção.
A Bíblia ensina que: fomos
tirados do reino das trevas (Cl 1.13), fomos transportados para o Reino do
Filho (Cl 1.13), fomos comprados por bom preço (1Co 6.20), pertencemos a Deus
(1Pe 2.9), estamos selados para o dia da redenção (Ef 4.30), e ninguém pode nos
arrebatar das mãos de Cristo (Jo 10.28). Essas afirmações, tomadas juntas,
estabelecem a doutrina da posse espiritual definitiva do crente por Deus. Logo,
a ideia de “dar legalidade ao diabo” é contrária à doutrina bíblica sobre
propriedade espiritual, redenção, selamento e pertença ao Senhor.
CAPÍTULO 2 — O SELAMENTO PELO ESPÍRITO
SANTO COMO ATO JURÍDICO E DEFINITIVO
A doutrina reformada
identifica o selamento do Espírito Santo como ato jurídico divino realizado
sobre o eleito no momento da regeneração e aplicado permanentemente até o dia
da redenção. O selo, no contexto bíblico, desempenhava a função de autenticação,
proteção, posse e garantia daquele que selava. Quando Paulo emprega o termo
“selados”, ele utiliza linguagem jurídica exatamente para expressar aquisição
divina definitiva sobre o salvo.
A expressão paulina em
Efésios 4.30 é crucial: “E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual
estais selados para o dia da redenção” (Ef 4.30, ARC). O verbo “estais selados”
encontra-se no tempo perfeito, implicando ação completa e efeitos permanentes.
Não se trata de selamento momentâneo ou condicional, mas de uma realidade
espiritual estável. O texto acrescenta que o selo permanece “para o dia da
redenção”, indicando que não há previsão de ruptura antes da consumação
escatológica. Ou seja, quem é selado, permanece selado. Teologicamente, isso
significa que o domínio espiritual do eleito pertence unicamente a Deus, sendo
impossível imaginar que, após selado, o crente pudesse transferir legalmente
autoridade ao diabo.
O selo como marca de
propriedade é linguagem jurídica e histórica. “Em quem também vós estais,
depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e,
tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa” (Ef
1.13, ARC). Aqui fica explícito que o selamento é consequência da fé, e que
esta fé foi concedida pela graça (Ef 2.8), de modo que o selamento não depende
da performance moral humana, mas da obra salvífica de Cristo.
O termo usado por Paulo
inclui ideia de permanência até o “dia da redenção”. Ora, se o selo dura até o
dia da redenção, então entre o momento da regeneração e o momento final, não
existe qualquer “intervalo legal” em que o diabo possa reivindicar autoridade
novamente. O selo é garantia contra reivindicações adversárias. Logo,
biblicamente, a expressão “legalidade ao diabo” seria teologicamente absurda.
O selamento está
intimamente ligado à segurança do crente. Cristo declara: “E dou-lhes a vida
eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo
10.28, ARC). O verbo “arrebatar” significa tomar à força, arrancar da posse.
Aqui Cristo exclui qualquer possibilidade de domínio externo sobre os salvos.
Trata-se de uma promessa inquebrável, que evidencia a impossibilidade de
qualquer tipo de retomada demoníaca.
A segurança do selo decorre
da obra redentora consumada. Cristo cumpriu a lei, satisfez a justiça de Deus e
venceu o diabo. A Escritura declara: “Havendo riscado a cédula que era contra
nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou
do meio de nós, cravando-a na cruz” (Cl 2.14, ARC). Cristo cancelou a dívida
que nos era contrária, logo não resta qualquer título legal para reivindicação
diabólica posterior. O que foi cancelado, está cancelado definitivamente.
O apóstolo Paulo reforça
essa certeza quando diz: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus?
É Deus quem os justifica” (Rm 8.33, ARC). Se Deus justifica, nenhum outro
agente pode levantar acusação procedente. Se não há acusação válida, impossível
falar de “legalidade ao diabo”. A própria Escritura neutraliza essa hipótese
teologicamente. E Paulo prossegue: “Porque estou certo de que nem a morte, nem
a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades [...] nos poderá
separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8.38-39,
ARC). Observe-se que o texto inclui “principados e potestades”, expressão
frequentemente aplicada ao mundo espiritual maligno. Paulo é explícito: nem
potestades podem separar os salvos de Cristo. Logo, não existe possibilidade de
transferência de domínio espiritual.
CAPÍTULO 3 — O SENHORIO DE CRISTO SOBRE
O CRENTE SEGUNDO A DOUTRINA REFORMADA
Uma das afirmações centrais
da fé reformada é o Senhorio exclusivo de Cristo sobre os eleitos. A Bíblia
afirma que Cristo tem domínio supremo sobre todas as coisas, e especialmente
sobre a vida daqueles que Ele redimiu. A doutrina reformada insiste que a
salvação não é apenas perdão de pecados, mas mudança de Senhor. Não há
neutralidade espiritual: ou o homem pertence ao diabo, ou à Cristo. E uma vez
pertencente a Cristo, não pode pertencer novamente ao inimigo.
O ensino apostólico afirma
que Cristo é Senhor sobre todas as coisas: “Porque nele foram criadas todas as
coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam
dominações, sejam principados, sejam potestades: tudo foi criado por ele e para
ele” (Cl 1.16, ARC). Observe-se que o texto inclui “dominações”, “principados”
e “potestades”; categorias frequentemente aplicadas às hierarquias espirituais.
Paulo deixa claro que até o mundo espiritual está sujeito a Cristo na criação.
Se Cristo cria e domina até
principados e potestades, nenhum ente maligno pode ter autoridade superior
sobre a vida de um crente remido. Após sua ressurreição e ascensão, Cristo
declara: “É-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mt 28.18, ARC). Todo poder
significa autoridade total e indiscutível. Se Cristo possui todo poder na
terra, então não resta poder legal para o diabo reivindicar domínio sobre a
vida daquele que foi comprado por Cristo. Paulo também ensina que Cristo é
cabeça da Igreja: “E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as
coisas o constituiu como cabeça da igreja” (Ef 1.22, ARC). Esta subjugação
inclui “todas as coisas”, inclusive o mundo maligno. Assim, a Igreja está sob o
domínio do Cabeça, e o Cabeça está acima de todas as potestades.
A ideia central aqui é que
Cristo reina sobre nós pelo Espírito Santo. Quando alguém é regenerado, o
Espírito passa a habitar nesse crente, estabelecendo a residência espiritual de
Cristo em seu interior. A posse do Espírito é posse de Cristo. Não há possibilidade
de convivência com demônios nesse mesmo lugar espiritual. O Espírito é selo,
habitação, garantia e proteção. A doutrina reformada insiste que o reinado de
Cristo não é metafórico, é real, espiritual e definitivo. Calvino afirma que
Cristo reina sobre nós pelo Espírito, e onde Cristo reina, Satanás não tem
lugar (Institutas, III.24.4). O reformador é categórico em afirmar que a obra
de Cristo não pode ser desfeita no crente regenerado.
Paulo afirma também que
Cristo adquiriu a igreja pelo preço de seu sangue, quando diz: “Pastoreai a
igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (At 20.28, ARC). Não
se trata apenas de resgate, mas de aquisição. A igreja pertence àquele que pagou
o preço. Logo, se Cristo pagou o preço, o diabo não pode reclamar posse. A
habitação espiritual do crente pertence a Cristo tanto na justificação quanto
na adoção. Paulo afirma: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu,
mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20, ARC). Se Cristo vive no crente, então não
existe espaço de residência demoníaca. O texto não apenas diz que Cristo é o
Salvador, mas que Ele vive em nós. A presença de Cristo é espiritual, pessoal e
real.
Se Cristo é Senhor, o diabo
não pode ser. A Bíblia nunca afirma que um salvo pode voltar a ser escravo do
diabo. Pelo contrário, afirma: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós” (Rm
6.14, ARC). Se o pecado não tem domínio, e se Satanás utiliza o pecado, então
Satanás também não tem domínio. A doutrina bíblica é clara: o crente está
libertado da escravidão do pecado, e, portanto, libertado do domínio de
Satanás. Cristo é Senhor e possui autoridade total sobre sua igreja.
CAPÍTULO 4 — EXEGESE DETALHADA DE
EFÉSIOS 4.27 (“NÃO DEIS LUGAR AO DIABO”)
O texto de Efésios 4.27 é
frequentemente utilizado como base para a doutrina de “legalidade espiritual”
no meio neopentecostal. Contudo, quando analisado dentro do seu contexto
imediato e da teologia paulina como um todo, percebe-se que Paulo não está debatendo
domínio jurídico demoníaco sobre o crente, mas advertindo contra pecados que
prejudicam a vida comunitária e a santificação pessoal. O versículo em questão
declara: “Não deis lugar ao diabo” (Ef 4.27, ARC). A tradução literal do termo
grego tópos significa “espaço”, “oportunidade”, “ocasião”. O termo não
significa “autoridade”, “jurisdição” ou “direito legal”. Não há, portanto, base
exegética suficiente para afirmar que Paulo está tratando de concessão de posse
espiritual ao diabo.
O contexto anterior é
decisivo: “Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef
4.26, ARC). Observe-se que Paulo está tratando da ira não resolvida, e não da
possibilidade de perda de salvação ou de domínio espiritual. A advertência de
não dar lugar ao diabo está ligada à ira não resolvida, e não à perda de
domínio espiritual para o inimigo. O contexto é santificação, não jurisdição
demoníaca.
A continuidade do texto
confirma o que estamos dizendo. “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe,
mas só a que for boa para promover a edificação” (Ef 4.29, ARC). É evidente que
Paulo está tratando de atitudes e comportamentos que podem entristecer o
Espírito e prejudicar a santidade dos crentes, mas nada indica que tais
comportamentos possam gerar nova “legalidade demoníaca”. Pelo contrário, o
próprio texto afirma: “E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual
estais selados para o dia da redenção” (Ef 4.30, ARC). O texto bíblico afirma
ao mesmo tempo: “não deis lugar ao diabo” e “estais selados até o dia da
redenção”. Ou seja, está dizendo que em questões de pecado, o crente tem um
chamado à santificação, mas permanece selado.
Paulo também afirma na
sequência: “Toda amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia sejam
tiradas de entre vós, juntamente com toda malícia” (Ef 4.31, ARC). Aqui
novamente o apóstolo trata de comportamento, não de jurisdição espiritual. A
doutrina reformada sempre ensinou que o crente pode cair em pecado, mas não
pode perder o selo do Espírito nem a união com Cristo. A Escritura ensina que
Deus disciplina seus filhos, mas não os entrega novamente ao diabo (Hb 12.6-8).
O contexto da santificação explica Efésios 4.27: Paulo quer que os crentes
vivam em santidade, e não que temam uma suposta retomada de domínio legal por
Satanás.
CAPÍTULO 5 — EXEGESE AMPLIADA DE 1 JOÃO
5.18 (“O MALIGNO NÃO LHE TOCA”)
O texto diz: “Sabemos que
todo aquele que é nascido de Deus não peca; mas o que de Deus é gerado
conserva-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca” (1Jo 5.18, ARC). Há três
afirmações centrais aqui: 1) “todo aquele que é nascido de Deus”; 2) “o que de
Deus é gerado conserva-se a si mesmo”; 3) “o maligno não lhe toca”. Estas
expressões precisam ser compreendidas em seu contexto teológico e exegético.
Primeiramente, João fala da identidade espiritual do salvo. Não é apenas aquele
que crê externamente, mas aquele que é nascido de Deus. A regeneração é
transformação interior operada pelo Espírito Santo. Desde a regeneração, a alma
passa a pertencer à vida divina, e não mais ao domínio das trevas.
Logo, a frase “o maligno
não lhe toca” significa, em sua função teológica, que Satanás não domina o
regenerado. Ele pode tentar, pode oprimir externamente, pode atacar de diversas
formas, mas não pode tomar posse, nem exercer domínio espiritual. Se o maligno
não pode tocar o crente, então não pode exercer autoridade legal. A expressão
“não toca” é uma negação absoluta de domínio demoníaco.
João descarta o domínio das
trevas. O apóstolo afirma: “Para isto o Filho de Deus se manifestou: para
desfazer as obras do diabo” (1Jo 3.8, ARC). Se Cristo desfaz as obras do diabo
na vida do regenerado, então qualquer ideia de retorno ao domínio satânico
seria contrária à obra de Cristo. Cristo destruiu a autoridade do diabo sobre o
crente. Se o diabo pudesse reassumir legalidade, Cristo não teria desfazido
totalmente as obras do maligno — o que seria teologicamente errado.
João afirma posse
espiritual dupla e exclusiva. O texto de 1 João apresenta o mundo em polaridade
espiritual: “Filhinhos, sois de Deus, e já os tendes vencido; porque maior é o
que está em vós do que o que está no mundo” (1Jo 4.4, ARC). Se o que está em nós
é maior, então o que está no mundo não exerce autoridade dentro de nós. A
preposição “em” é fundamental: Cristo habita no crente, e não existe habitação
simultânea de Cristo e Satanás dentro do mesmo templo espiritual. Paulo afirma:
“Cristo em vós, esperança da glória” (Cl 1.27, ARC).
João afirma também que
Cristo dá vida eterna aos seus. “E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de
perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10.28, ARC). A vida eterna é
consequência da união com Cristo e obra consumada. A expressão “ninguém as arrebatará
da minha mão” é teologicamente absoluta. Se ninguém pode arrebatar, não existe
espaço para invasão legal. Satanás não pode tomar o que Cristo segura.
Portanto, o texto ensina
que o regenerado é propriedade divina, é guardado por Deus, e o maligno não
pode dominar o crente. A hipótese neopentecostal de “dar legalidade ao diabo”
contradiz diretamente esta declaração apostólica. João não admite possibilidade
de domínio demoníaco sobre o regenerado, e qualquer doutrina que contrarie esta
verdade deve ser rejeitada com firmeza.
CAPÍTULO 6 — EXEGESE AMPLIADA DE
COLOSSENSES 1.13 (A TRANSFERÊNCIA DEFINITIVA DE DOMÍNIO)
O texto afirma: “O qual nos
tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o Reino do Filho do seu
amor” (Cl 1.13, ARC). Aqui temos a declaração mais clara de transferência
espiritual no Novo Testamento. Paulo ensina que Deus tira, liberta, remove e
transporta os salvos do domínio satânico para o domínio de Cristo. Essa mudança
é definitiva, espiritual e objetiva. Não se trata de mera metáfora moral.
Trata-se de transferência real.
“Tirou” implica ato
soberano. Não é o homem quem tira a si mesmo; é Deus quem tira. A potestade das
trevas significa o poder espiritual de Satanás. Paulo ensina que antes da
conversão estávamos sob esse domínio, mas após a regeneração não estamos mais.
Portanto, qualquer teoria que diga que o crente pode dar legalidade ao diabo
contradiz explicitamente Colossenses 1.13. A doutrina reformada ensina que o
crente foi libertado da escravidão do pecado e do domínio espiritual das
trevas.
Transportar significa
conduzir a outro lugar. Aqui, “transportou” indica mudança de posição
espiritual. O salvo é levado para o Reino do Filho. Logo, se foi transportado,
já não está na potestade das trevas. A ideia de conceder legalidade ao diabo
pressupõe que o crente possa ser espiritualmente transportado de volta para as
trevas após a regeneração — algo que o texto jamais sugere. Não existe tal
enseñanza paulina.
“O Reino do Filho do seu
amor” significa posse espiritual definitiva. O crente agora pertence ao Reino
de Cristo. Não existe texto bíblico que descreva retorno ao reino de Satanás
após o novo nascimento. Pelo contrário, Paulo diz que “nenhuma condenação há
para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1, ARC). A falta de condenação implica
permanência no Reino da graça. Se Satanás tivesse base legal para reassumir
domínio, haveria condenação. Isso contraria a doutrina paulina.
Paulo explica ainda que
Cristo anulou todo escrito de dívida: “Havendo riscado a cédula que era contra
nós nas suas ordenanças... a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz” (Cl
2.14, ARC). E mais: “Despojando os principados e potestades” (Cl 2.15, ARC).
Cristo removeu toda autoridade demoniaca legítima. Não existe possibilidade de
retomada. A vitória de Cristo foi plena. Nada nas Escrituras sugere restauração
do domínio demoníaco sobre o regenerado.
CAPÍTULO 7 — A UNIÃO COM CRISTO COMO
FUNDAMENTO TEOLÓGICO DEFINITIVO CONTRA A IDEIA DE LEGALIDADE DEMONÍACA
Se existe uma doutrina
capaz de desmontar de forma absoluta a hipótese neopentecostal de “dar
legalidade ao diabo”, essa doutrina é a união com Cristo. A tradição reformada
considera esta a “joia da coroa” da soteriologia. Tudo aquilo que o salvo
possui (justificação, adoção, regeneração, santificação, glorificação) deriva
da sua união vital e representativa com Cristo. Se o salvo está unido a Cristo,
então está dentro de Cristo. E se está dentro de Cristo, o diabo jamais poderá
possuir, dominar ou alegar qualquer direito jurídico sobre aquele que está
unido ao Senhor.
Paulo afirma: “Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20,
ARC). Note que Paulo não afirma apenas que Cristo está “com” o crente, mas que
Cristo vive “em” seu interior. Isso é união espiritual, não mera proximidade
moral. Cristo vivendo no crente significa que o diabo não vive nele. Não há
“compartilhamento espiritual”. Trata-se de posse total do Espírito Santo.
A união implica
participação na vida divina. Pedro afirma: “Para que, por elas, fiqueis
participantes da natureza divina” (2Pe 1.4, ARC). A participação da natureza
divina exclui completamente a ideia de participação demoníaca. Se participamos
da natureza divina, somos espiritualmente separados do domínio das trevas para
sempre. Não existe meia participação. A regeneração é mudança ontológica —
deixa-se de ser da potestade das trevas e passa-se a ser do Reino de Cristo.
A união implica adoção
definitiva. Paulo ensina a adoção filial: “E, porque sois filhos, Deus enviou
aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gl 4.6,
ARC). Filiação é relação jurídica permanente. Um filho adotado espiritualmente
não pode tornar-se novamente filho do diabo. A adoção cancela para sempre a
filiação anterior. A ideia de “legalidade ao diabo” implicaria reversão da
adoção, o que contraria totalmente a doutrina bíblica.
A união implica morte para
o pecado. “Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos
para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6.11, ARC). Morte para o pecado
significa fim do domínio satânico. Não significa ausência de tentação, mas fim
de autoridade. Nenhuma autoridade morta pode ser reativada legalmente. A união
implica vida em Cristo: “Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em
mim, e eu em vós” (Jo 14.20, ARC). O crente está “em” Cristo, e Cristo está
“no” crente. Essa é a linguagem ontológica mais profunda do Novo Testamento. Se
estou em Cristo, não estou sob autoridade satânica. Não existe “dupla
residência espiritual”.
A união é irreversível. A
união com Cristo é garantida eternamente pela eleição. Paulo escreve: “Porque
os que dantes conheceu também os predestinou [...] e aos que predestinou a
esses também chamou; e aos que chamou a esses também justificou; e aos que justificou
a esses também glorificou” (Rm 8.29-30, ARC). Observe que o texto caminha da
predestinação à glorificação como elos de corrente indestrutível. Não há espaço
para regressão ao domínio demoníaco. A doutrina reformada ensina que a salvação
é obra de Deus do início ao fim. Não existe ruptura da união com Cristo.
Crer em legalidade ao diabo
implica negar a união. Se alguém afirma que o crente pode dar legalidade ao
diabo, está implicitamente dizendo que Cristo pode perder o que comprou; que o
Espírito pode perder o que selou; que o Pai pode desfazer a adoção; que a
eleição pode ser anulada; que a justificação pode ser revogada; que a união
pode ser rompida. Isso é teologicamente incompatível com a Escritura e com a
teologia reformada. Portanto, a união com Cristo implica posse espiritual
definitiva, vida em Cristo, adoção eterna, morte para o pecado, participação da
natureza divina, impossibilidade absoluta de domínio demoníaco.
CAPÍTULO 8 — AS IMPLICAÇÕES
SOTERIOLÓGICAS NA DOUTRINA REFORMADA
Toda perspectiva reformada
da salvação aponta para um conjunto de realidades espirituais que, por sua
própria natureza, tornam impossível a ideia de que um crente regenerado possa
voltar a estar sob poder ou “legalidade” de Satanás. A soteriologia reformada é
uma cadeia dourada. Cada doutrina depende das outras. A compreensão de
“legalidade demoníaca” afeta todas elas.
A eleição eterna é
incompatível com perda de domínio. A eleição não é condicional. Paulo declara:
“Porque os que dantes conheceu também os predestinou” (Rm 8.29, ARC). Depois:
“Aí também os chamou, e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou,
a esses também glorificou” (Rm 8.30, ARC). Observe o modo verbal: glorificou.
Paulo fala da glorificação como já concluída, para mostrar a certeza da obra. A
eleição conduz necessariamente à glorificação. Se assim é, não há possibilidade
de o eleito voltar a pertencer espiritualmente ao maligno. Negar isso seria
negar a eleição.
O chamado eficaz implica
posse de Deus. Paulo ensina: “Fiel é o que vos chama” (1Ts 5.24, ARC). Se Deus
é fiel ao chamado, Ele é fiel à posse daquele a quem chamou. A fidelidade
divina é garantia de posse espiritual. A justificação cancela toda acusação legal.
Paulo pergunta: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus
quem os justifica” (Rm 8.33, ARC). Se Deus justifica, ninguém pode acusar. Se
ninguém pode acusar, Satanás também não pode. A doutrina reformada sempre
ensinou que a justificação é ato jurídico de Deus. Assim, juridicamente
falando, não há espaço para acusação legal do diabo. Isso destrói totalmente o
conceito de “legalidade”.
A adoção como relação
jurídica permanente. Paulo declara: “E, porque sois filhos, Deus enviou aos
vossos corações o Espírito de seu Filho” (Gl 4.6, ARC). A adoção implica
mudança jurídica definitiva. Filho adotado não volta a ser órfão espiritual. Se
somos filhos de Deus, não podemos voltar a ser filhos do diabo (Jo 8.44) após
regeneração. Isso implicaria anular a adoção. Biblicamente impossível.
A regeneração como nova
natureza. Paulo afirma: “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é;
as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2Co 5.17, ARC). Nova
criatura é nova natureza. Novo nascimento não pode ser retrocedido. A ideia de
retrocesso espiritual legal a Satanás nega a regeneração.
A santificação progressiva
é certeza. Paulo diz: “Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós
começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Fp 1.6, ARC).
Quem começou, aperfeiçoará. Isso é promessa direta. Não há cláusula de perda por
atuação demoníaca. A perseverança dos santos é divina, não humana. Jesus
declara: “E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as
arrebatará da minha mão” (Jo 10.28, ARC). Perseverança é baseada na mão de
Cristo, não na força do crente. Se ninguém pode arrebatar, muito menos Satanás.
A doutrina da “legalidade
espiritual” destrói toda soteriologia reformada. Se um crente pode dar
legalidade ao diabo, então: a eleição pode falhar, o chamado eficaz pode ser
impotente, a justificação pode ser anulada, a adoção pode ser revogada, a
regeneração pode ser revertida, a santificação pode ser paralisada e a
perseverança pode ser perdida. Ou seja, toda a soteriologia reformada seria
falsa — o que é absurdo bíblico e histórico. A ideia de “dar legalidade ao
diabo” não é apenas falsa; ela é soteriologicamente impossível. Contradiz
eleição, chamado, justificação, adoção, regeneração, santificação e
perseverança. É uma negação sistemática da cadeia dourada da salvação.
CAPÍTULO 9 — CRÍTICA TEOLÓGICA À
“BATALHA ESPIRITUAL” NEOPENTECOSTAL E A IDEIA DE “LEGALIDADE”
A chamada “teologia de
batalha espiritual” desenvolvida no contexto brasileiro (e latino-americano)
não surgiu da tradição reformada, nem das confissões históricas, muito menos da
teologia puritana. Este corpo doutrinário, com sua linguagem peculiar de “brechas”,
“legalidade”, “territórios demoníacos”, “transferência de maldição” e “quebra
de pactos”, é produto de uma mistura entre movimentos carismáticos radicais,
influências da literatura de autoajuda espiritual e interpretações místicas não
comprovadas biblicamente. O problema não é apenas ausência de base textual, mas
o fato de esta teologia conflitar frontalmente com a cristologia, com a
soteriologia reformada e com a doutrina central da suficiência da obra de
Cristo.
A batalha espiritual na
Bíblia não é jurídica, mas moral. Sempre que a Bíblia fala de batalha
espiritual, ela a descreve como luta contra o pecado, opressão, tentação, e não
como disputa jurídica de propriedade espiritual sobre o regenerado. Por
exemplo, Paulo diz: “Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais
estar firmes contra as astutas ciladas do diabo” (Ef 6.11, ARC). Observe que
Paulo está preocupado com ciladas, não com legalidade. A batalha é moral e
espiritual, não jurídica. O principal alvo de Satanás não é a posse, mas a
tentação. A Escritura mostra Satanás tentando até Jesus (Mt 4.1–11). A tentação
não significa posse. Em nenhum ponto da narrativa existe linguagem de
legalidade. Cristo não abriu brecha; contudo, foi tentado. Logo, tentação não é
juridicidade satânica.
A metáfora jurídica é
inventada. Paulo jamais escreveu que um pecado pode fazer o diabo reassumir
domínio espiritual sobre o crente. Ele afirma o contrário: “Porque o pecado não
terá domínio sobre vós” (Rm 6.14, ARC). Portanto, se o pecado não domina, Satanás
também não domina através do pecado. Se a Escritura diz expressamente que o
pecado não tem domínio, não pode haver legalidade demoníaca. A “legalidade
demoníaca” tornaria o evangelho impotente. Se o crente pudesse perder sua
libertação por causa de um pecado, então Cristo não teria libertado totalmente.
Isto contraria a afirmação: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que
estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1, ARC). Nenhuma condenação inclui nenhuma
acusação maligna válida.
A batalha espiritual é
vencida pela fé, não por ritos. Pedro afirma: “Resisti ao diabo, firmes na fé”
(1Pe 5.9, ARC). A resistência é espiritual, baseada na fé, não em rituais,
campanhas, quebra de maldições ou declarações místicas. Não existe prática ritual
prescrita para romper legalidade. Satanás é derrotado pela cruz, não por
técnicas humanas. A Bíblia afirma: “E, despojando os principados e potestades,
os expôs publicamente e deles triunfou em si mesmo” (Cl 2.15, ARC). A vitória
contra Satanás pertence a Cristo, não ao crente. Não existe ensino de que o
crente tenha que “manter” sua libertação por meio de técnicas espirituais
humanas. Se Cristo despojou, não resta possessão.
A teologia reformada afirma
a vitória objetiva da cruz. A Reforma sempre insistiu que o evangelho consiste
em obra objetiva, realizada por Deus na história, e não subjetiva, dependente
da performance humana. Quando se diz que o crente pode perder libertação por
abrir “legalidade”, substitui-se a obra objetiva da cruz por manutenção
subjetiva. Isso é extremamente perigoso. A dependência de rituais produz medo,
não fé. A teologia de legalidade espiritual produz escrúpulos psíquicos,
paranoia teológica, medo constante, dependência de líderes, ritualismo místico
e centralidade no diabo, não em Cristo. O evangelho, porém, produz paz e
confiança em Cristo.
A crítica final: a doutrina
de legalidade espiritual não aparece na Bíblia, nem na Reforma, contradiz
Paulo, contradiz João, contradiz a união com Cristo, contradiz o selo do
Espírito, contradiz a vitória da cruz, contradiz a segurança eterna, contradiz a
justificação, contradiz a adoção, contradiz a regeneração, contradiz a
perseverança dos santos. Portanto, essa doutrina deve ser rejeitada como
contrária à Escritura, à ortodoxia cristã e à teologia reformada clássica.
CAPÍTULO 10 — CONSEQUÊNCIAS PASTORAIS
DA DOUTRINA ERRADA DA “LEGALIDADE DEMONÍACA”
A questão da suposta
“legalidade ao diabo” não é apenas um erro exegético ou teológico; é um erro
pastoral grave, que mexe com o emocional, com a consciência e até com a saúde
mental de muitos crentes sinceros. Pastoralmente, a doutrina da “legalidade” tem
causado danos profundos, como insegurança espiritual, medo, dependência
religiosa e afastamento da doutrina da graça. Quando uma pessoa crê que o diabo
pode reassumir autoridade legal sobre ela, automaticamente vive prisioneira de
medo e escrúpulo. Em vez de confiar na obra perfeita de Cristo, passa a basear
sua vida espiritual em vigilância ritualística, tentando evitar qualquer brecha
imaginária. Isso é pastoralmente devastador.
O medo como motivação
espiritual é antibíblico. A Escritura declara: “Porque Deus não nos deu o
espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação” (2Tm 1.7, ARC).
Deus não dá espírito de medo; dá segurança. Qualquer doutrina que acumulula medo
constante no coração do crente não vem de Deus. A segurança da salvação é
fundamento pastoral. João afirma: “Estas coisas vos escrevi, para que saibais
que tendes a vida eterna” (1Jo 5.13, ARC). Se o objetivo apostólico é produzir
certeza, não podemos pregar doutrinas que produzam incerteza espiritual.
Ensinar legalidade ao diabo é produzir o efeito oposto da Escritura.
A paz é fruto do evangelho.
Paulo escreve: “A paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os
vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus” (Fp 4.7, ARC). A paz
guarda o coração. O medo destrói a paz. Doutrinas que levam o crente a temer o
diabo mais do que confiar em Cristo são pastoralmente destruidoras. O culto
perde seu foco. Quando uma igreja adota a ideia de legalidade espiritual,
ocorre uma distorção sutil: o culto deixa de ser centrado em Cristo e passa a
ser centrado na guerra espiritual. O diabo torna-se tema constante. Orações são
dirigidas contra demônios e não ao Senhor; a adoração perde o foco, torna-se
reação ao inimigo.
A Bíblia, porém, manda
cultuar a Deus: “Digno é o Cordeiro, que foi morto” (Ap 5.12, ARC). Não diz
“vigiai para não perder a libertação”. O emocional do crente adoece. A crença
em legalidade pode produzir ansiedade, culpa obsessiva, escrúpulos religiosos,
síndrome do pânico espiritual, medo constante de maldição, insegurança
salvífica. Pastores reformados ao longo da história sempre cuidaram de almas
lembrando-as da obra completa de Cristo, e não produzindo terror religioso. A
dependência de líderes e rituais é fruto desse ensino. Quando se prega que o
diabo pode reassumir domínio, forma-se dependência de campanhas, correntes
espirituais, orações específicas, quebra de maldição. Isso cria ambiente
propício para manipulação pastoral e abuso espiritual.
Cristo declarou: “Se, pois,
o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36, ARC). Se Cristo
liberta, rituais não são necessários para manter libertação. Pedro diz: “O
qual, levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre a árvore, para que
mortos para os pecados, vivamos para a justiça” (1Pe 2.24, ARC). A libertação
do pecado e do diabo ocorreu quando Cristo levou nossos pecados na cruz. Não é
um processo repetitivo, é fato consumado. A doutrina da legalidade demoníaca
destrói a segurança espiritual, enfraquece a fé, desloca o foco do culto,
adoece crentes sensíveis, cria escrúpulos e pânico, abre espaço para
manipulação espiritual. Pastoralmente, deve ser repudiada. A verdadeira
pregação bíblica deve produzir descanso em Cristo, paz com Deus e alegria no
Espírito Santo.
CAPÍTULO 11 — CONCLUSÃO GERAL: O CRENTE
NÃO PODE DAR LEGALIDADE AO DIABO
Após examinarmos
detidamente os textos bíblicos, a exegese reformada e a doutrina soteriológica,
podemos afirmar com absoluta segurança teológica e pastoral que não existe
fundamento bíblico para a ideia de que um crente regenerado possa “dar
legalidade ao diabo”. Toda a Escritura aponta para a posse espiritual
definitiva do crente pelo Senhor. O convertido foi tirado da potestade das
trevas, transportado para o Reino do Filho, selado pelo Espírito Santo,
justificado, adotado, regenerado, unido a Cristo, vivificado, ressuscitado
espiritualmente, e feito participante da natureza divina. Se tudo isso é
verdade — e é — então não existe qualquer condição espiritual em que o salvo
volte a ser juridicamente pertencente ao diabo.
A Escritura é clara: “O
maligno não lhe toca” (1Jo 5.18, ARC). Cristo declarou: “E dou-lhes a vida
eterna, e nunca hão de perecer” (Jo 10.28, ARC). O apóstolo Pedro afirmou: “Mas
vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido”
(1Pe 2.9, ARC). Paulo declarou: “O qual nos tirou da potestade das trevas” (Cl
1.13, ARC). E o apóstolo novamente reforça: “E não entristeçais o Espírito
Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da redenção” (Ef 4.30, ARC). O
autor sagrado confirma ainda que: “Despojando os principados e potestades, os
expôs publicamente e deles triunfou em si mesmo” (Cl 2.15, ARC). Logo, o crente
jamais pode dar legalidade ao diabo, porque pertence irreversivelmente ao
Senhor Jesus Cristo.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Almeida Revista e Corrigida.
