A CASTA QUE SÓ SAI COM ORAÇÃO E JEJUM

 


O presente artigo analisa criticamente o texto de Mateus 17.21, à luz da crítica textual e da teologia reformada, a fim de esclarecer o sentido da expressão “esta casta não se expulsa senão por oração e jejum”. Após considerar a ausência do versículo nos manuscritos mais antigos, confronta-se com o texto paralelo de Marcos 9.29, buscando compreender o valor espiritual da oração e do jejum nas Escrituras. O estudo examina também a leitura patrística e reformada, especialmente em Calvino e Matthew Henry, ressaltando que a ênfase não está em técnicas espirituais, mas na dependência absoluta do poder divino. Conclui-se que, ainda que o jejum possa ser útil como disciplina espiritual, é a fé genuína e a súplica constante que movem a intervenção divina em contextos de batalha espiritual.

Palavras-chave: oração; jejum; libertação; crítica textual; teologia reformada.

1 INTRODUÇÃO

A passagem de Mateus 17.21, ausente em alguns manuscritos e traduções modernas, mas presente em versões tradicionais como a Almeida Revista e Corrigida (ARC), tem sido amplamente debatida entre exegetas e teólogos. A frase “esta casta não se expulsa senão por oração e jejum” sugere uma categoria espiritual resistente que exigiria ações específicas para ser confrontada. O presente estudo busca analisar a confiabilidade textual desse versículo e, sobretudo, o significado doutrinário da oração e do jejum à luz da teologia reformada.

2 ANÁLISE TEXTUAL CRÍTICA

A crítica textual moderna reconhece que Mateus 17.21 está ausente nos manuscritos mais antigos, como o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, sendo considerado um provável acréscimo posterior baseado em Marcos 9.29 (ALAND et al., 1993). Este último, embora mais antigo, também apresenta variantes: alguns manuscritos dizem apenas “oração”, omitindo “e jejum”. Isso tem levado tradutores contemporâneos a omitir Mateus 17.21 ou inseri-lo entre colchetes.

Segundo Bruce Metzger (1994, p. 45), “a presença do versículo em Mateus provavelmente deriva de um esforço devocional posterior para harmonizar os relatos sinóticos”. Isso não invalida a prática do jejum, mas questiona seu caráter normativo para exorcismos.

3 INTERPRETAÇÃO REFORMADA

João Calvino, em seu comentário sobre Marcos 9.29, afirma que “Cristo quer dizer que eles careciam da verdadeira fé, que se manifesta pela oração perseverante” (CALVINO, 2009, p. 201). Para ele, o foco está na confiança ativa em Deus, e não em ritos ascéticos. Ainda que não condene o jejum, Calvino vê nele um instrumento auxiliar e não essencial.

Matthew Henry (2008), ao comentar Marcos 9, entende que “a oração é a respiração da fé, e o jejum é o remédio para a incredulidade, pois mortifica o corpo e desperta a alma para a vigilância”.

Ambos os autores reformados deixam claro que a força para vencer resistências espirituais não provém de atos exteriores, mas da fé viva expressa em oração.

4 DIMENSÃO TEOLÓGICA DO JEJUM E DA ORAÇÃO

Na teologia reformada, tanto o jejum quanto a oração são considerados meios de graça. O jejum, conforme afirma Horton (2011, p. 626), “é útil para disciplinar a carne, mas deve ser conduzido com entendimento e moderação, não como imposição legalista”. Ele não é uma técnica para obter poder, mas um exercício de humildade e comunhão com Deus (cf. Is 58.3-11).

A oração, por sua vez, é o meio ordinário pelo qual o crente se comunica com Deus e submete sua vontade à d’Ele (WESTMINSTER, 2018, cap. 21). Oração e jejum não têm valor em si mesmos, mas apenas quando associados à fé genuína (Hb 11.6).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que Mateus 17.21 possa não fazer parte do texto original, a mensagem doutrinária que emerge do episódio relatado por Marcos é clara: a libertação espiritual exige não técnicas humanas, mas dependência radical do poder divino. Oração e jejum, quando praticados com fé e discernimento, são expressões da comunhão com Deus, e não ferramentas mágicas. A teologia reformada insiste que é Deus quem liberta, por meio da fé, e que todo poder espiritual repousa n’Ele.

REFERÊNCIAS

ALAND, Kurt et al. The Greek New Testament. 4. ed. Stuttgart: United Bible Societies, 1993.

CALVINO, João. Comentário de João Calvino: Evangelho Segundo Marcos. Trad. Valter Graciano Martins. São Paulo: Paracletos, 2009.

HENRY, Matthew. Comentário Bíblico de Matthew Henry: Novo Testamento. São Paulo: CPAD, 2008.

HORTON, Michael. Teologia Sistemática: Uma abordagem reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. 2. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994.

WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2018.

Filipi dos Reis

Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e atua como advogado desde 2017. Com sólida formação jurídica, Filipi também se dedica aos estudos teológicos, sendo pós-graduando em Teologia Reformada e em Apocalipse e Escatologia pelo Instituto Reformado de São Paulo. Sua trajetória é marcada pela integração entre fé e vocação, com especial interesse na escatologia à luz das Escrituras e da tradição reformada.

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